Enquanto a temporada não começa, continuamos tratando
de outros assuntos. E hoje, o nosso colaborador João HenRique Alves traz uma
visão sobre o torcedor moderno.
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Créditos na Imagem |
Queria começar esse texto dizendo que não tenho nada
contra a geração que cresceu e se acostumou a jogar jogos eletrônicos. A minha geração
não foi assim.
Pelo menos para as pessoas do meu poder aquisitivo àquela
época: para quem cresceu na década de 80, filho de ajudante de mecânico e
faxineira como eu, eram poucas as crianças que tinham acesso a essa maravilhosa
engenhoca tecnológica.
Tive a oportunidade de jogar alguns jogos com meus
colegas de bairro mais abastados, em reuniões regadas e leite Quick sabor
morango e bolachas Mabel.
Quando me esforço a lembrar desses jogos e máquinas
antigas me vêm à mente nomes como Caça-fantasmas e Robocop, Mario Bros e Sonic,
Master System, Phantom System e Atari. Depois, Super Ness e jogos de corrida
como Super Mônaco GP.
Mais tarde, mais molecão, surgiu o “Arcade”: meus amigos
e eu juntávamos uns cruzeiros para comprar fichas e ir ao bar, aonde dividíamos
nossos parcos recursos tomando Itubaína e comprando fichas para medir nossa
testosterona juvenil em alguns jogos de luta como Street Figther, Kings of
Fighters e Mortal Kombat. Mas confesso perdia muita grana, nunca fui tão bom
nisso.
Preferia jogar bola na rua e comprar Gibi dos X-Men. Nunca
tive videogame em casa.
Já pré-adolescente meu melhor amigo comprou um
Playstation. Ele me convidava pra jogar Resident Evil II e eu gostava bastante
daquele jogo estratégico com zumbi. Depois disso, cresci e nunca mais me
interessei por videogame como entretenimento sério na minha vida.
No meio disso tudo o futebol sempre foi uma paixão
constante. Do meu pai torcedor do Colorado que me iniciou no jogo quando víamos
os jogos do campeonato brasileiro ou “o desafio ao galo” na TV, a minha escolha
e o meu amor pela Sociedade Esportiva Palmeiras de Edmundo e Evair e, anos mais
tarde, dividindo esse amor com o Arsenal Football Club de Ian Wright e Dennis
“God” Bergkamp, futebol sempre foi o meu entretenimento primário.
Mas nunca me interessei pelos jogos de videogame baseados
na vida real. E eles já existiam nessa época em algumas plataformas, mas não me
lembro bem como eram.
Enfim, divago, como sempre.
Hoje, uma geração toda cresceu com jogos de última
geração, cujos “overall” tentam emular a vida real dos campos por detrás dos
consoles e seus controles.
Você entra no mundo virtual e se transforma, ao mesmo
tempo, em técnico, dono de time de futebol, jogador e torcedor, dependendo, é
lógico, do que você está fazendo naquele momento: se está em uma partida você
pode ser o Ibrahimovich, Rooney, Alexis, Hamsik ou Neuer.
Se estiver comprando os jogadores, incorpora Mourinho,
Tite ou Guardiola e contrata ao bel prazer das moedas que se acumulam enquanto
você vai ganhando o jogo virtual, e assim por diante.
Toda a informação do parágrafo anterior eu consegui com
amigos que jogam porque eu jamais joguei.
Um dia passeando com minha família pelo Ribeirão Shopping
e andando por uma loja da FNAC vi dois garotos jogando um desses jogos numa cabina
de demonstração.
Eu parei por um breve momento e fiquei contemplando a
maravilha tecnológica e a perfeição dos detalhes e fiquei imaginando se os
gráficos e detalhes podem ficar melhores com o passar dos anos; mas logo outra
ficha caiu (sou da época da ficha de orelhão): a facilidade de se fazer no
controle aquilo que é puramente difícil na vida real e que eles provavelmente
não podem fazer com uma bola de couro de verdade no pé.
Comecei a pensar no poder que aquilo dava aos garotos:
eles podiam simplesmente “ser” seus grandes ídolos. E mais: fazer por eles o
que eles querem que eles façam em campo, e, às vezes, não conseguem. Não há
frustração que eles não possam aplacar. Não há campeonato o qual não possam
ganhar. É muito poder para uma pessoa só. Eu posso ser Kun Agüero. Eu posso ser
Harry Kane. Eu posso ser o Mesut fucking Özil. E quando me cansar deles, posso
ser quem eu quiser.
E se eu consigo replicar meu Hat Trick em três jogos
seguidos, quem é o Giroud para não o fazer? Conclusão óbvia: Giroud é um pereba
(apesar de ser um belo pereba de 1,92 m).
Com certeza, eles podem tudo!!!
Agora vem o ponto nevrálgico desse post que, se você teve
a paciência de chegar até aqui, desde já, agradeço: a confusão do mundo virtual
com o mundo real e as cretinices que a partir desse ponto são criadas.
Obviamente, a vida não é uma simulação de videogame
(apesar de alguns cientistas dizerem que pode ser) e os sucessos partilhados
por milhões de usuários dos consoles não se repete como os aprouver nos campos
de grama de verdade: Ibrahimovich não vem pro Arsenal num clique, não posso
vender o pereba do meu Rooney pra contratar um “overall” maior, o Alexis se
machuca e eu não troco minhas moedas pela pronta recuperação dele, Hamsik muda
o cabelo mais vezes no ano do que antes da próxima versão do jogo e o Neuer
virtual parece ser mais baixo que o da vida real e ainda assim pega até
pensamento ruim embaixo da trave.
Essas frustrações parecem espelhar a frustração natural
do jogo na vida real, de não poder fazer acontecer aquilo que eu realmente
queria que fosse a minha vida de verdade. E isso para mim não é “torcer”, é “só
querer ganhar”.
No game, quando uma campanha acaba, começa outra, e as 38
partidas que eu acompanho durante os longos 9 meses na vida cruel ocorrem em
menos de uma semana na virtual. Até menos, se você tiver o tempo e
disponibilidade para tanto. Perdi o campeonato? Começo de novo, até ganhar. Tá
muito difícil? Diminuo o level, me aprimoro e vou em frente.
É claro que jogo é um entretenimento, como qualquer
outro. Eu gosto de brincar com minha filha, namorar a minha esposa, cozinhar e
assistir filmes e séries. Tem gente que acha isso um saco. Todos temos o
direito de achar a vida dos outros um saco. O problema é que a nova geração
confunde tudo e se aliena misturando alhos com bugalhos.
Então chegamos à janela de transferências que se
avizinha: se o Arsenal não contrata no primeiro dia da abertura da janela um
“World Class overall 84” o problema é o técnico. Será? Depende, e depende de um
monte de coisas.
Até onde esse extremismo é levado pelo jogo virtual, que
“desvirtua” nosso julgamento sobre o que ocorre no mundo de verdade?
É justo afirmar que essa geração que tem os jogadores que
quiser em seus videogames cria a expectativa de tê-los em seus clubes na vida
real como meio de compensar as frustrações das derrotas ou da falta de um
título?
É verdadeiro afirmar que eles se baseiam muito mais na
máquina para querer tal jogador em seu time que pelo que esse realmente faz em
campo?
Por outro lado, será que hoje conseguimos formar esse
juízo de valor sobre jogadores e suas habilidades com tantos campeonatos
acontecendo com tantos jogadores no mercado, ou seja, temos tempo de ver todos
eles em ação durante toda uma temporada para formar um juízo de valor verdadeiro?
Será que temos mais respaldo do conforto de nosso sofá
para saber o que é melhor para um clube do que seu técnico que trabalha nisso
diariamente?
Temos direito a ter opinião, mas será que ela é mais
relevante do que a dos especialistas no assunto, quem vive no meio?
A resposta para as todas essas perguntas para mim é NÃO.
Minha conclusão é: quando vejo torcedores (e não só
brasileiros) nas redes sociais, essa outra invenção da vida moderna, bancando
os técnicos e colocando Alexis Sanches de centroavante no time ou dispensando o
Giroud para contratar o Higuaín ou querendo a contratação do Kanté quando
acabou de chegar o Xhaka num time que já tem o Coquelin que não vai sair, eu
acredito que a alienação é sim verdadeira e o videogame é grande responsável
por esse comportamento errático, porque forma uma opinião de que no mundo vale
tudo, como na máquina.
Claro que eu também tenho minhas vontades: acho que o
Arsenal precisava ter novo grande atacante e eu adoraria ver o Robert Lewandowski
no meu time, porque o acho rápido e habilidoso, um goleador nato como Henry
era. Plus, ele é jovem e parece ser um cara legal para com o grupo, mais
humilde que a maioria. Fosse eu Wenger ou seu conselheiro, despejaria um Boeing
de Euros e o traria.
E assim é com alguns outros nomes, assim como adoraria
ver o clube se livrando de uma naba ou outra.
Agora, se ele não vem, outro vem. Se não vem ninguém, a
gente xinga o técnico e paciência, a vida segue e eu sigo torcendo.
No mundo real, jogadores pensam em dinheiro, tem
prioridades de onde querem morar, duração de contrato, visibilidade que o time
que vai jogar lhe dá... tem jogador que não passa em exame médico e perde
transferência. Não se adapta à língua e comida de outros países e flopa. Machuca-se,
volta mal e já tem outro no lugar jogando melhor. Briga com técnico, etc e tal.
Técnico de futebol, às vezes, não consegue contratar por
falta de grana, ou porque o elenco tá inchado e não consegue passar outro
jogador.
Ou porque o mercado tá inflacionado e um atleta que deveria
custar, no máximo, 12 milhões de euros de multa e 70 de salário semanal não sai
por menos que 32 milhões + 100 semanal.
Essas coisas não são consideradas. Só é considerado o que
não é real, ou o “Overall”, que um colega, num rompante dia desses numa rede
social, solicitou que os colegas do grupo enfiassem naquele lugar!
Eu sou um “Véi Paia”. Assisto ao jogo de verdade, me levo
pelas frustrações de verdade, e apoio o time com os jogadores que ele tem,
apesar de xingá-los de coisas impublicáveis quando cagam em campo, porque sou
fã do futebol e de meu clube, e não de jogador e técnico (mas isso é conversa
para outro dia).
Isso tudo é opinião conflitante para a maioria que hoje
assiste e “joga” futebol.
E sim, não sou o dono da verdade.
Só gosto de viver “na” verdade.
Abraços
João
HenRique Alves.